Aldeias femininas de Portugal: o rosto invisível da memória
- walkingtourwithvanessa
- 3 de nov.
- 4 min de leitura
Não é visível à primeira vista, mas quando começamos a escavar — sabes, como quem escava a terra — começamos a ver figuras, rostos e histórias de infinitas mulheres.
No artigo de hoje, partilho uma reflexão que há muito tempo me acompanha: serão as aldeias, tal como as cidades, também lugares femininos?

As minhas raízes e o feminino da aldeia
Nasci e cresci numa pequena aldeia do concelho de Barcelos, no Minho, em Portugal.
Nasci no seio de uma família matriarcal, e posso asseverar que a minha aldeia é, também ela, profundamente matriarcal.
Na verdade, não o serão quase todas as aldeias portuguesas?
Para Michelle Perrot, a mulher do povo é a mais pública de todas as mulheres, pois as condições medíocres em que viviam empurravam-nas para fora de casa — para o mercado de trabalho, para a rua, para o mundo.
Ao contrário da cidade, no campo o espaço público/privado associado à mulher não é, de todo, pertinente para compreender as relações entre os sexos. Isto porque, nas aldeias, todos partilham o espaço - seja a igreja ou até mesmo o campo. A diferença está no modo de dizer e de fazer.
As mulheres que moldaram o quotidiano
A diferença dos sexos nas aldeias constata-se na mãe que transmite o enxoval à filha, na costureira que ensina a tratar da roupa e nas lavadeiras que conhecem todos os segredos das famílias.
Na aldeia, o olhar e a palavra contam mais do que o espaço.
É a mulher que modela a esfera pública, que dá a opinião comum e define como todos devem ser tratados.
Ao longo da história, foram as mulheres (na sua maioria) que permaneceram nas aldeias quando os homens partiam — para a guerra, para o mar ou para a emigração. Foram elas que mantiveram a terra viva, o pão a sair do forno, as crianças a crescer e o corpo da aldeia inteiro.
Em muitas das aldeias de Portugal, o tempo tem o rosto das mulheres. Às vezes, ele é enrugado, marcado pela passagem, pela dureza da vida e pela miséria. Outras vezes, é um rosto jovem, de criança, de menina com o olhar inocente, cheio de sonhos e ânsias de ver o além dos campos.
São as mulheres que madrugam para acender o lume, que regam as hortas, que amassam o pão ou que lavam a roupa no tanque. São elas próprias o ciclo das estações: sabem quando plantar, o que plantar, quando colher e quando deixar repousar.
(A agricultura em Portugal continua a ser, na maioria, sustentada pelas mulheres).
O saber ancestral e o sagrado feminino
Mas o feminino da aldeia não se vê apenas no trabalho: sente-se nas vozes que ecoam nas festas, nas rezas e nas histórias contadas; nas lendas e nos mitos. Bebe-se do chá, das mezinhas que só elas sabem fazer - ora, chá de casca de cebola para passar a tosse seca e irritativa.
A aldeia é, no seu todo, um espaço de transmissão de saberes femininos: as curas das plantas, as rezas contra o mau-olhado, os partos e até as procissões e os longos tapetes de flores. Elas representam o lado sagrado e ancestral da aldeia.
A aldeia é, portanto, um lugar de memória viva, onde a ancestralidade nunca morre. Muito pelo contrário, continua presente e deseja manter-se nas próximas gerações. As mulheres, ao repetirem o que as suas mães e avós fizeram, são as guardiãs do legado feminino.
Pensar as aldeias femininas de Portugal
Pensar na aldeia como um lugar feminino é reconhecer o valor do invisível, do lento e do essencial.
É olhar o território e ver nele o reflexo do cuidado, da resistência e da memória feminina. É também uma forma de reconciliação entre o passado e o presente, entre o humano e a natureza, entre o feminino e o mundo.
É esse olhar que procuro sempre. Não só na cidade, mas também nas aldeias. Porque todos os lugares guardam camadas e camadas de histórias femininas à espera de serem contadas.
Dar voz à mulher é, afinal, dar vida aos lugares.
O silêncio e a ausência feminina na paisagem
Porém, nas aldeias, como nas cidades, as mulheres construíram o quotidiano, cimentaram bases e tradições, mas, mais uma vez, não foram inscritas na paisagem — e muito menos escritas pelos livros, dadas a conhecer. Com isto quero dizer que o feminino não está (nem deve estar) apenas na imaterialidade. Ele também se revela (e deve revelar-se) na materialidade dos lugares: nas placas, nos nomes das ruas, nas memórias gravadas em pedra.
Na maioria das aldeias portuguesas, as ruas, placas ou monumentos evocativos homenageiam santos, datas, batalhas ou figuras masculinas. É curioso que, quando o feminino aparece, quase sempre vem através do sagrado — como se o único lugar de destaque para a mulher fosse um altar.
Na minha aldeia, por exemplo, há apenas dois nomes femininos: o Largo de Santa Ana e a Rua de Nossa Senhora de Fátima. Evocam a santidade, disfarçada de mulher. Quanto às outras — as que ficaram, as que cuidaram, as que lavaram, as que criaram — parece-me que ficaram esquecidas, algures perdidas no tempo, sem memória pública.
Essa ausência é igualmente uma forma de silêncio. A aldeia é feminina na prática, masculina no feito e na paisagem. E esta ausência convida-te a olhar de novo. A perceber onde estão as histórias e as pessoas mais escondidas. A escavar, mais uma vez, a terra.
Mulheres que fizeram história nas aldeias portuguesas
Na aldeia de Abade de Neiva, em Barcelos, tudo começa com a fundação de uma pequena ermida por D. Mafalda de Saboia, a primeira rainha consorte de Portugal.
Em Galegos de São Martinho, o núcleo do artesanato, nasceu Rosa Ramalho e muitas outras mulheres ilustres das artes e dos ofícios.
Em Roriz, Barcelos, Maria Bernarda liderou a revolta popular de 1862, também conhecida como a Revolta de Maria Bernarda, em protesto contra o aumento de impostos.
Em Fonte Arcada, na Póvoa de Lanhoso, nasceu a imortal Revolta de Maria da Fonte.
Estes são apenas alguns exemplos das muitas histórias que provam que as aldeias femininas de Portugal guardam um património vivo e esquecido.
Mas isso é tema para outros roteiros feministas em forno — e para outras histórias aqui no blog.
Um convite para escavares mais fundo.
Talvez também tenhas uma aldeia dentro de ti — feita de memórias, vozes e gestos de mulheres que te antecederam.
Se quiseres continuar esta viagem interior através dos lugares, acompanha-me nos walking tours feministas.
Com carinho,
Vanessa

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