Memórias de mulheres é um espaço seguro onde procuro dar e contar a história das mulheres que são memórias, e que sempre o serão.
Resgatar memórias permite-nos conectar com os outros. E, como seres humanos, temos uma ânsia inegável de nos relacionar profundamente com alguém.
As memórias relembram-nos de onde viemos, das pessoas que amamos e dos sonhos que acalentamos. São o nosso maior refúgio em tempos sombrios e a nossa maior celebração em momentos de alegria.
A memória é um ato de amor que nos relembra a vida e tecem a essência da nossa existência. Lembra-nos de que, por mais que o tempo passe, o que sentimos ou vivemos jamais será esquecido.
Meti a cafeteira ao lume, peguei em duas chávenas e esperei que o café saísse, ainda que lentamente. Chamei a minha avó e, quando cheguei à cozinha, o cheiro a café acabado de fazer inundava-a, levando-me a um momento da minha vida que queria guardar para sempre.
Sentei-me com a minha avó, num dia bonito de sol, e pedi-lhe que me contasse a sua história. Eu já a sabia de cor e salteada, mas nunca é demais resgatar memórias, tempos passados e histórias de alguém que já viveu tanto!
Teresa tem vários significados. Colher e ceifar são os mais comuns, e agora compreendo a ligação quase mística do nome. E talvez foi bem escolhido pelos meus bisavós.
A minha avó nasceu no dia 11 de julho de 1938, em casa, e é a mais velha de 6 irmãos.
Sentamo-nos na soleira da porta de casa, naquela aldeia de Barcelos, que mesmo pequenina é uma história aberta a todos os habitantes que lá moram e que por lá passaram, reinventando-se em todas as gerações.
A passagem do tempo não passa despercebida, mas com firmeza e certeza, a minha avó sabe a idade que tem e relembra com nostalgia um período da sua vida que a marcou para sempre. Nas suas palavras, “A vida não foi fácil”.
O corpo e a alma carregam 86 anos, e por aqueles olhos tanta coisa viu e pelas suas mãos tantos filhos, netos e enfermos cuidou.
Começou a trabalhar aos 10 anos, quando se viu obrigada a ter de sair de casa dos pais para “Ir servir” a casa de pessoas mais abastadas. A fome e a miséria gritavam mais alto às vivências de infância que nunca teve.
De pouco um tudo fazia para ganhar uma migalha de trocos, mas era o suficiente para alimentar a família!
Contou-me que a sua vida era passada a cuidar dos filhos dos patrões, a lavrar a terra, a semear a terra e a ceifar a terra. Quando a noite já ia alta, ficava naquele compartimento escuro da casa, a tecer. Tapetes que depois os venderia.
Era uma atividade que realmente gostava e se não fosse as dores dos ossos e o “Não puder”, continuava a passar as tardes dos seus dias a fazer aquilo que mais gostava.
A minha avó estava sentada numa cadeira e eu no chão. Bebemos mais um gole de café e perguntei-lhe “Como era ser mulher na tua altura?”
Sem qualquer hesitação respondeu-me “Olha, era muito difícil”. Ela movia montanhas para alimentar a famílias, quando o marido nem por aí se importava muito.
Contou-me que, na maioria das famílias da aldeia, quem suportava todo o trabalho dentro de casa eram as mulheres, e também o tinham de o fazer no campo.
Acrescentou que em quase todas as casas habitava uma onda de violência. Ninguém fazia queixas e nas suas palavras cansadas afirmou com tristeza “As mulheres levavam do marido e iam para o campo trabalhar. Não havia a proteção que há agora”.
Mesmo já sabendo a resposta, voltei a questionar “Como conheceste o avô?”. Deu um riso alto e contou-me aquela história que eu já conhecia de cor.
Voltando no tempo, relembrou que na altura andava a trabalhar na casa de um senhor que era conhecido por lá como Ferreira. Por lá, também andava ele, um moço bem parecido. “De tanto dizer que não o queria, e que preferia limpar as valetas das ruas a casar com ele, acabei por casar com ele”. Tinha 25 anos quando casou com o Luís.
“Avó, sentias amor por ele?”. Deu aos ombros e respondeu que sim. E que, ainda hoje, decorridos 20 anos da sua morte, por vezes, sente saudades dele.
Do casamento nasceram 10 filhos, 5 nasceram em casa e apenas 9 estão vivos. Contam-se 7 raparigas, todas elas levam na herança o nome Maria, nome da sua mãe. E 2 rapazes, um carrega o nome do pai, Manuel, o outro carrega o nome do marido, Luís.
A casa onde viveu foi construída por si e pelo seu marido. Contou-me que o terreno foi dado pelo seu pai, Manuel, e situava-se em frente à casa dos seus pais. Recordou os dias da sua vida em que trazia do mercado sacos de cimento para a construção da casa.
É uma casa simples e humilde, mas que guarda anos de vivências e histórias de uma família minhota. Já acolheu os filhos, os netos e, hoje, recebe os seus bisnetos. Já não cuida deles, porque já não pode, mas “Se pudesse, cuidava”.
Se fosse perguntar a cada filho ou a cada neto as memórias que têm, um sorriso seria dado e relembrariam com nostalgia algum período que marcou a sua vida. Afinal, é quase sempre assim quando se sentam à mesa!
No que toca a mim, a minha avó foi a minha segunda mãe. Ia-me buscar à escola, ensinou-me a tecer e deu-me a provar o café. Bebida que hoje é símbolo de amor e afeto, que oferece a todos os que a casa vão.
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Lembra-se do 25 de abril de 1974, o dia em que a ditadura caiu, e perguntei-lhe se ela foi votar quando o voto se tornou um direito universal: “Claro que fui”.
Uma das suas maiores tristezas é de não saber ler e escrever, mas isso nunca foi impedimento de seguir com a sua vida e de ser uma mulher informada.
Prevalece a questão: como se coloca em palavras 86 anos de história?
Sentindo cada momento e cada palavra da pessoa que nos conta, e tentar o mais perto possível recriar a sua história. A verdade, é que a história da minha avó vai além dos 86 anos.
Hoje, continua a fazer a sua vida normal, mas já é acompanhada do peso do tempo e da velhice. Ao longo da dura realidade, foram muitas as vezes que caiu, levantou e voltou a refazer-se. Porque a sede de trazer alimento e abrigo à família nunca foi questão para desistir.
Voltamos no tempo, para uma época em que viver numa aldeia agrícola com poucos recursos era um verdadeiro desafio. No entanto, a simplicidade e a felicidade impulsionavam a vida daqueles que lá moravam.
Já viu muitos dos seus amigos e conhecidos despedirem-se. Confessou-me que tem medo da morte, “Mas tem de ser. Todos vamos um dia”.
Memórias de Mulheres inspiram-nos. Memórias de Mulheres mostram que, às vezes, não precisamos de muito para descobrir histórias.
Por vezes, basta sentarmo-nos com alguém e perguntar: Conta-me a tua história.
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Suporte extra
Se te sentiste inspirada e se tens uma história de vida para partilhar, ou conheces alguém cuja história merece ser ouvida, sente-te à vontade para entrar em contacto comigo.
Adoraria conhecer mais histórias inspiradoras de mulheres. Juntas, podemos honrar essas memórias, valorizar a nossa história e celebrar a força das mulheres ao longo dos tempos.
Até breve!
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