Memórias de mulheres é um espaço seguro onde procuro homenagear e contar a história das mulheres que são memórias, e que sempre o serão.
As memórias são as nossas bases, fontes inesgotáveis de fragmentos humanos. E, como humanos, procuramos incessantemente por algo profundo.
As memórias são um ato de amor que nos relembra a vida e assevera a nossa existência, porque, sem elas, não seremos mais do que pedaços vazios de carne humana.
Resta-nos relembrar essas memórias e essas mulheres!
Ouvir histórias de pessoas reais, capazes de preencher folhas em branco, é uma poderosa ferramenta para nos inspirarmos e aprendermos.
No artigo de hoje, escrevo-te mais uma história real da rubrica Memórias de mulheres. E hoje, vamos voar até à ilha da Madeira, até ao Funchal.
~
A varanda do apartamento era pequena, mas tinha espaço suficiente para acolher filhos e netos, onde entre conversas nostálgicas, são acompanhados por uma vista privilegiada para o Funchal.
Sentei-me numa cadeira com uma almofada amarela confortável e perguntei-lhe se me podia contar a sua história. Um brilho fez-se nos olhos e um sorriso deu forma à face, que carrega os 88 anos de uma longa vida.
Alexandra nasceu no dia 17 de novembro de 1936, em Machico. Lugares que cercados pela terra e pelo mar faziam-se grandes, e a ruralidade era a protagonista.
Contou-me que, um dia, a sua irmã mais velha a viu a chorar e rapidamente foi ter com ela para perceber o que tinha acontecido: queria frequentar a escola, mas a mãe não a deixava porque era “coisa de meninos”.
Este é o início da história de uma mulher que queria aprender a ler e a escrever. E foi através da sua irmã, Maria, que deu os primeiros passos, matriculando-a na escola.
Disse-me que a sua irmã não sabia ler nem escrever e que, como tinha um namorado em Mafra, muitas das vezes tinha de pedir ajuda à vizinha para lhe escrever e ler as cartas. Como não queria o mesmo para Alexandra, matriculou-a.
Depois… vieram as férias, nunca mais retornando à escola.
Porém, não foi um problema. Quando ia à vila, guardava nos seus pertences todos os pedaços de jornal que ia encontrando e levava para casa. A rir-se dos seus feitos, contou-me que se escondia da sua mãe e tentava formar palavras com aquilo que entendia.
Recorda com carinho a vizinha que lhe ensinou o restante. Assim, Alexandra aprendeu a ler e a escrever. Hoje, não o faz com tanta frequência porque os “olhos já estão cansados”.
A condição da mulher…
Houve um momento, durante a conversa, em que lhe perguntei como era a condição da mulher no seu tempo. Atenta à pergunta, mas com o olhar posto no horizonte, ali na pequena varanda, respondeu-me que as mulheres não tinham liberdades. Nas suas palavras: "As mulheres não saíam sozinhas. Até para ir à missa iam acompanhadas". Para falarem com algum rapaz, eles tinham de pedir autorização aos pais.
~
Quando entramos no pequeno e acolhedor apartamento, somos recebidos não só por Alexandra, mas também pelo pequeno móvel que se veste de quadros dos filhos, dos netos, da bisneta e, claro, do seu marido.
É uma saudação de boas-vindas que prontamente nos convida a entrar e a sentir que fazemos parte daquela casa.
Até porque falar da história de Alexandra é falar da sua história de amor, que sempre faz questão de recordar.
Voamos no tempo, até à altura em que ela tinha 16 anos e ele, 20.
Foi na Ponta do Sol, uma pequena vila da Madeira, que conheceu o seu primeiro e único amor. Chamava-se Luciano e, sem perder tempo, riu-se e disse-me que ficaram viciados um no outro. Recordou-me dos seus bonitos olhos azuis, que se assemelhavam ao enorme oceano que abraça a ilha.
Homem convicto dos seus sentimentos, perguntou ao padrinho de Alexandra se podia conversar com ela.
Dois jovens que viveram 54 anos juntos. Da história de amor nasceram quatro filhos: três raparigas e um rapaz.
Uma mulher informada e não querendo que os seus filhos, sobretudo as raparigas, passassem pelo que ela passou, meteu todos eles a estudar. Acrescentou que, na opinião do seu marido, apenas o rapaz deveria ter esse privilégio. Inconformada com as injustiças, declarou que queria "tudo por igual para os filhos".
Como ditava a norma, as mulheres do seu tempo eram donas de casa e tinham como principal atividade cuidar dos filhos e de toda a parte doméstica. Porém, Alexandra dedicava-se à costura, trazendo ainda mais rendimento para a sua família.
A máquina de costura ainda existe, encostada a uma parede num quarto da sua casa. Velha em tempo, mas guardiã de horas de trabalho, de roupas feitas e de famílias felizes. Ao olhá-la, percebe-se que não é somente uma ferramenta de trabalho. É uma protetora que, por anos e anos, serviu-se de mãos habilidosas e ágeis na longa e trabalhosa arte de costurar.
Um dia, teve uma oportunidade. E, claro, não recusou. Ofereceram-lhe o trabalho de governante na casa de alguém mais abastado. Não pensou duas vezes. Contou-me que, nesse dia, chegou a casa, virou-se para os filhos e marido e exclamou: "Amanhã a mãe vai trabalhar".
Pelas suas palavras, o marido não gostou muito da ideia de ela ir trabalhar. Mas, com uma boa gargalhada, lá foi no dia seguinte.
O seu novo posto de trabalho permitia-lhe viver bem dentro dos parâmetros da vida da época. Confessou-me que, na altura, chegava a ganhar mais do que o seu marido e sustentava a casa.
~
Fala de Luciano, o seu amor, com grande saudade. Todos os dias, desde a sua morte, levanta-se, dirige-se para a fotografia dele no móvel da entrada de casa, dá-lhe os bons-dias e acompanha com um beijo.
É como se ainda estivesse ali… Na verdade, continua. Relembrado com amor pelas memórias de tempos idos de um casamento feliz.
Tudo o que mais deseja é voltar a encontrá-lo. E não existem dúvidas de que almas gémeas se encontram sempre.
Há algo enigmático no significado do seu nome que vai ao encontro daquilo que é. Alexandra, em palavras simples, significa defensora da humanidade, e mostra-se ser uma alma justa. Ora, nunca um nome acertou tão bem a uma alma inquieta, justa e cheia de garra.
À Alexandra e a todas as mulheres que fazem da Madeira a ilha que é!
Memórias de Mulheres inspiram-nos. Memórias de Mulheres mostram que, às vezes, não precisamos de muito para descobrir histórias.
Por vezes, basta sentarmo-nos com alguém e perguntar: Conta-me a tua história.
~
Suporte extra
Se te sentiste inspirada e se tens uma história de vida para partilhar, ou conheces alguém cuja história merece ser ouvida, sente-te à vontade para entrar em contacto comigo.
Adoraria conhecer mais histórias inspiradoras de mulheres. Juntas, podemos honrar essas memórias, valorizar a nossa história e celebrar a força das mulheres ao longo dos tempos.
Até breve!
Vanessa
Comments