Há muito tempo que queria visitar Vila Viçosa e conhecer as mulheres que fizeram dela a princesa do Alentejo. Acredito que os lugares que visitamos – as cidades, aldeias ou vilas que exploramos, ou até as histórias e conhecimentos que trazemos connosco – são uma volta sem fim.
São histórias que, entrelaçadas com as nossas vivências, onde quer que seja, levam-nos a viajar no tempo, tecidas por mãos que, frequentemente, são silenciadas ou esquecidas na narrativa oficial.
Vila Viçosa: a princesa do Alentejo
Entre um vale fértil e abundante em água, encontramos o Vale Viçosa, mais tarde eternizado como Vila Viçosa. A sua história é tão antiga quanto a sua própria essência.
Ocupada por romanos e muçulmanos, tornou-se uma pequena vila cristã quando, em 1217, foi conquistada pelo rei D. Afonso II e fortificada, no século XIV, no reinado de D. Dinis, por um forte e muralhado castelo. O grande salto de Vila Viçosa dá-se no século XV, quando a vila passou a integrar o Ducado de Bragança. Esta importância refletiu-se na construção do Paço Ducal de Vila Viçosa, iniciado em 1501.
Avançando mais um pouco, em 1640, no auge da luta de Portugal pela independência face ao domínio espanhol, o Duque de Bragança, João II, surge como o candidato perfeito para usar a coroa portuguesa, tornando-se o rei D. João IV. Foi em Vila Viçosa que nasceu a quarta e última dinastia portuguesa.
A vida aqui é lenta, pitoresca e inspiradora. Saboreia-se a deliciosa gastronomia alentejana e os doces conventuais. As pessoas convidam-nos para o âmago da vila, e as memórias são o melhor que levamos.
Roteiro feminino em Vila Viçosa
Como sabes, as mulheres, geralmente, tornaram-se invisíveis nas páginas da História e nos mapas culturais dos lugares, embora tenham desempenhado papéis essenciais na construção e transformação desses mesmos espaços.
Quando nos atrevemos a olhar para os lugares sob a ótica feminina, percebemos que eles não são apenas cenários físicos, mas testemunhos de vida, de lutas e de resistência das mulheres.
Elas, com as suas narrativas e memórias, têm uma ligação profunda com o local que habitaram (ou influenciaram de alguma maneira), e é essa conexão que confere identidade, valor e significado ao espaço.
Não posso deixar de mencionar que fiquei muito feliz por sentir, e em cheio, a presença feminina em Vila Viçosa. Tudo nela respira a história da mulher. A conexão foi quase instantânea e o mergulho foi profundo. E, por essa razão, vou partilhar contigo um roteiro escrito no feminino e para o feminino.
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Igreja Matriz de Vila Viçosa
A viagem começa na Igreja Matriz, também conhecida como Santuário de Nossa Senhora da Conceição. Foi o primeiro lugar que visitei quando cheguei à vila, enlaçada pelas muralhas do castelo. Este lugar é sagrado. Por um lado, é o Solar da Padroeira; por outro, é aqui que se encontra a imagem de Nossa Senhora da Conceição, a Padroeira de Portugal.
Sim, a padroeira é uma santa, uma figura feminina. Esta pequena igreja, construída entre 1569 e 1606, com traços maneiristas, é considerada um dos lugares-chave do culto mariano no país. Diz a História que foi junto desta imagem, na igreja da vila, que, no dia 25 de março de 1646, o rei D. João IV depositou a coroa e declarou Nossa Senhora da Conceição a padroeira e a rainha de Portugal. A partir deste momento, os reis portugueses deixaram de usar a coroa.
Igreja e Convento das Chagas de Cristo e o Panteão das Duquesas de Bragança
Situada ao lado do Paço Ducal, a igreja foi construída em 1514, por ordem de D. Jaime, que procurava um local para ser o Panteão das Duquesas de Bragança. O Real Convento das Chagas de Cristo foi, desde 1535, ocupado pelas religiosas clarissas do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja. Este convento foi pensado para mulheres, recolhendo muitas jovens da nobreza do reino.
O interior da igreja foi classificado como monumento nacional em 1944 e, para a visitar, assim como o Panteão das Duquesas, o melhor dia é o domingo, já que a igreja abre ao culto. O Convento das Chagas de Cristo foi o convento mais rico de Vila Viçosa, onde também nasceu e renasceu a doçaria conventual tradicional de Vila Viçosa, nomeadamente a Tiborna, Manjar das Chagas, Toucinho-do-Céu, Toucinho dos Duques, Fatias Duquesas, Broas das Chagas e as Barrigas de Freira.
Convento da nossa Senhora da Esperança
A fundação deste lugar sagrado remonta a 1555, a partir da junção de dois recolhimentos de terceiras. O primeiro, dedicado a Santo António, foi construído em 1516, sendo a sua fundadora Leonor Pires. O outro, com a invocação da Esperança, foi fundado por Isabel Cheirinha, que, ao falecer, deixou a casa sagrada a duas mulheres terceiras: Isabel Medeira e Isabel Rodrigues.
Mais tarde, a Duquesa de Bragança, D. Isabel de Lencastre, fundou o atual convento da nossa Senhora da Esperança, acolhendo uma comunidade de religiosas clarissas, que ocuparam o local até 1866. No seu interior, é possível encontrar, no Coro de Baixo, o túmulo da fundadora e da sua sogra, a Duquesa D. Leonor de Gusmão.
Paço Ducal de Vila Viçosa
Este Paço é maravilhoso, e a visita é imperdível. Trata-se do monumento mais emblemático de Vila Viçosa, cuja construção iniciou-se em 1501, por ordem do 4.º Duque de Bragança, D. Jaime.
Ao admirarmos a fachada, junto da estátua do rei D. João IV, observamos os 110 metros de fachada maneirista, totalmente revestida de mármore da região – um exemplar único da arquitetura civil portuguesa.
De residência permanente da primeira família da nobreza nacional, o Paço Ducal passou, a partir de 1640, a ser mais uma habitação real espalhada pelo reino.
Neste lugar, é impossível não mencionar uma história triste e uma memória feminina esquecida pelo tempo, entre encruzilhadas e jogos de poder.
O seu nome era D. Leonor de Gusmão e casou-se, em 1502, com D. Jaime I, o fundador do Paço. Não se sabe com exatidão a veracidade da informação, mas ao fim de 10 anos de casamento, D. Jaime achava que a sua esposa tinha uma relação extraconjugal com um fidalgo chamado António Alcoforado.
Num acesso de ciúmes, D. Jaime ordenou a prisão e a morte ao fidalgo no próprio paço da Vila. D. Leonor, assustada, procura os seus filhos e nos aposentos irá encontrar o seu marido, que levado por raiva e ciúme, apunhala a sua esposa.
Para alguns, acredita-se que a duquesa foi vítima de intrigas que circulavam pelo palácio. O que é certo é a que História diz que para os adúlteros, considerados ou inocentes, a punição é a morte.
Falar do Paço de Viçosa é mencionar D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV e de D. Luísa de Gusmão. Nasceu no Paço em 1638 e foi uma mulher distinta.
D. Catarina casou-se com o rei de Inglaterra, Carlos II, porém nunca foi considerada rainha, uma vez que era católica. Ela teve, realmente, muita dificuldade em adaptar-se à sua nova vida e corte. Ainda assim, Catarina ganhou a proteção, respeito e amor do seu marido. Levou para a Inglaterra o hábito de tomar o chá, o uso da porcelana, o vinho do Porto e da Madeira e os concertos de música. Viúva e sem descendência, voltou ao seu país de origem onde ordenou a construção do Paço Real da Bemposta, para sua habitação.
Busto de Públia Hortênsia de Castro
Públia foi uma mulher incontornável da cultura portuguesa do século XVI, que alcançou feitos incríveis. Terá sido das primeiras portuguesas (e europeias) a doutorar-se e foi a primeira mulher a dar uma conferência pública. Porém, pouco se sabe da sua vida.
Nasceu em Vila Viçosa em 1548 e era conhecida como a fidalga filósofa. Consta-se que se disfarçava de homem para frequentar, em conjunto com o seu irmão, as aulas de Humanidades, Filosofia e Teologia na Universidade de Coimbra. Com 17 anos, Públia Hortênsia defendeu teses de filosofia em Évora, e em 1581, na presença do rei Filipe II, defendeu teses sobre Teologia, pelo que recebeu reconhecimento pelo seu trabalho.
Aos 33 anos decidiu recolher-se no Convento de Évora. Fez parte do raro grupo de mulheres intelectuais que optaram pela vida religiosa. Faleceu em 1595, e toda a sua obra que criou com dedicação perdeu-se no tempo. Públia escreveu sonetos, cartas, poemas e salmos em português e latim.
Casa e túmulo de Florbela Espanca
O roteiro escrito no feminino termina, pois, na casa daquela que foi uma das poetisas mais extraordinárias do século XX: Florbela Espanca.
Nasceu em 1894 em Vila Viçosa, e foi o resultado de uma relação extraconjugal, já que a esposa do seu pai não podia ter filhos e autorizou o marido a relacionar-se com uma camponesa.
Viveu alheia aos acontecimentos políticos da primeira república, mas pertencia ao núcleo de mulheres que desafiava convenções. Foi das poucas a estudar Direito na Faculdade de Lisboa e, sempre que lhe apetecia, usava calças, indumentária exclusiva do sexo masculino.
Todas as suas obras foram sempre sobre as emoções, os sentimentos, matéria da sua poesia, escrita intuitiva e reveladora do mais íntimo de si. Ela foi uma importante voz feminina, tanto que ela mesma é a representação da emancipação literária da mulher. Após a perda do seu irmão, dos seus bebés e de uma vida infeliz, Florbela decidiu aos 36 anos deixar de viver. Em Vila Viçosa, a casa onde viveu é um depósito de memórias.
Um lugar a descobrir e a sentir. Florbela jaz no cemitério de Vila Viçosa, sendo estes, dois lugares de culto para quem, assim como ela, vê na poesia e na literatura o maior refúgio da vida dolorosa e amarga.
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Sei que esta viagem pelo feminino em Vila Viçosa te inspirou. Por isso, convido-te a mergulhar ainda mais nas histórias das mulheres que moldaram o nosso passado. Explora outros roteiros femininos e acompanha-me nos walking tours feministas por Lisboa, onde te conto as histórias das mulheres que marcaram a cidade e o país. Atreve-te a viver uma experiência de empoderamento e conhecimento através da tua própria história.
Com carinho,
Vanessa
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