Roupa de domingo - conto sobre a mulher portuguesa e os seus desejos de liberdade
- walkingtourwithvanessa
- 3 de jul.
- 5 min de leitura
Existem ideias que são semeadas dentro de nós e, um dia, florescem. Esta nasceu há cerca de um ano — e só agora sinto que chegou o momento de lhe dar a voz que merece.
Decidi escrever um pequeno livro de contos que une realidade e ficção para contar histórias do património cultural português… mas do ponto de vista feminino. Histórias de mulheres. De silêncios, de resistências, de liberdade.
Este é o primeiro conto sobre a mulher portuguesa. E quero partilhá-lo contigo

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Às onze horas da manhã, todos os caminhos iam dar a um único sítio: à pequena igreja daquela aldeia minhota, onde todos se conheciam e aí de qual estranho andasse por aquelas bandas. A missa das onze era celebrada por um padre velho e curvado, de óculos na ponta do nariz e muito mal-encarado. Já celebrou os funerais dos velhos, casou os filhos dos velhos e batizou os netos e bisnetos dos velhos. Era o padre Lima e ninguém gostava dele.
Mesmo as velhas crentes que não faltavam a um único domingo e morriam de medo do inferno. Aos domingos todos se aprontavam, quer fossem mulheres, homens e crianças. Todos vestiam as melhores roupas, até apelidavam “roupas de domingo”; lavavam a cara com água fresca do poço da casa e as mulheres dedicavam-se a pentear os longos cabelos e a entrançá-los o melhor que podiam. As novas ajudavam as velhas e depois as crianças.
Era esta a rotina de todos os domingos de manhã, que começava com o canto do galo, e estendia-se até à hora do almoço, quando terminava a missa do padre Lima. Ora, naquele domingo solarengo, a jovem rapariga Madalena, nome herdado da sua avó, após alimentar as galinhas e os porcos, ainda em combinação, abriu a gaveta da pequena cómoda do seu quarto e começou a tirar a sua roupa domingueira.
A combinação deixou-a estar porque é roupa obrigatória numa mulher decente, já o dizia a sua avó, e vestiu a camisa branca lavada bordada e depois o colete bordado com cores a fugir ao dourado bem ao seu gosto. Depois, apanhou da cama a saia rodada e de grande amplitude. Era cheia de corres, amarelo, rosa, verde, branco, mas aquela que mais gostava era o vermelho vivo que revestia toda a saia.
Era decorada com bordados iguais ao do seu colete; flores, corações e alguns simples pontos. Rematou com o avental preto e apertou-o muito às suas ancas, vá que ele se lhe desapertava. Sentou-se na cama, penteou a longa e escura cabeleira, como gostava de dizer a sua mãe, e fez uma trança sem antes parara três vezes com dores nos braços. Enrolou o cabelo, prendeu com os seus ganchos pretos de domingo e atou o seu único lenço vermelho de domingo, com estampados de flores.
Orgulhosamente, mulher minhota, só lhe faltavam as meias de renda branca, a algibeira e calçar as chinelas, colocar os pequenos brincos de ouro que conseguiu comprar com os bordados que vendia e já estava pronta para sair da pequena casa. A missa, aos domingos, era para esta gente um evento importante. Talvez dos mais importantes da semana, salvo se não fosse dia de festa. Aí, era todo um festival.
Era naquela pequena igreja da aldeia que todos se reuniam ao final da semana e perguntavam pelas novidades. Mas o que mais interessava às velhas da aldeola era comentar as vestimentas das moças jovens e dizer o quão bonitas elas estavam, já prontas para casar com fulano, filho de Herculano.
Quando a jovem rapariga chegou ao adro da igreja já pronta para entrar, porque não gostava de ouvir raspanetes do velho padre Lima, foi interrompida por uma velha vizinha, dizia-se amiga da sua avó, que o seu traje estava muito bem-composto.
— Obrigada. - disse a jovem rapariga, atrapalhada pelo elogio.
— A sua camisa é muito bonita, menina. - Voltou a elogiar a velha sem dentadura.
— Obrigada. Fui eu que a fiz. Se quiser, posso fazer-lhe uma, e depois levo-a a sua casa. Pode ser?
Disse-o enquanto entrava na igreja e procurava por um lugar mais distante do altar. A jovem rapariga não gostava da missa, muito menos do velho padre Lima e a única coisa que apreciava era usar o traje de domingo, que guardado na cómoda ganhava mofo.
Desejava sair dali e ir para a cidade. Ansiosa por liberdade, comprar o que queria sem dar satisfações a ninguém e gostava ainda mais que não lhe perguntassem porque ainda não casou. Naquele domingo solarengo, o padre estava doente e a voz rouca fazia adormecer.
O único momento de felicidade naquela missa para a jovem rapariga era saber que depois poderia parar um bocadinho no pequeno café da aldeia, gerido pelo senhor Fernando e pela Senhora Rosa, e conversar um bocadinho com as moças da sua idade. Durante a semana, não podia dar ao luxo de ter pausas para conversa porque o trabalho era muito e precisava de ser feito.
Às vezes, passava dias sem ver as suas amigas e sem lhes falar. Custava-lhe porque era uma rapariga com energia, com vontade de falar e, especialmente, com sonhos. Mas, naquele domingo, queria falar com as suas amigas sobre o noivado da jovem Rita e do boato espalhado, que a jovem noiva, foi à cidade botar o ouro, com os pais do seu noivo.
Ninguém sabia se era verdade, porque aquela família era muito reservada. Na missa, a jovem Rita, estava com o traje vermelho e não levantava suspeitas. Contudo, a jovem rapariga Madalena queria comentar com as suas amigas sobre o potencial noivado com um jovem que ninguém conhecia. Doze horas e o sino da igreja fez sinal.
Os velhos e os novos levantaram-se num ápice, juntando-se no adro da igreja para conversar e coscuvilhar: o momento era a jovem Rita e o seu suposto noivado que não fazia ver nem no ouro, nem no traje. Se calhar era tudo conversa fiada.
Todos os domingos a sua vida era aquela. Levantar-se, alimentar os animais, vestir o seu traje minhoto, arranjar o cabelo e ir à missa. Para a jovem Madalena, cheia de sonhos, não era um tormento, mas deseja por mais. Suspirava por mais e procurava sempre por mais.
Queria ser costureira na cidade e não na pequena aldeia onde todos se conheciam e davam palpites.
Naquela manhã de domingo, soou o sino para a missa, mas a jovem Madalena não foi. Nem tirou o traje da gaveta da pequena cómoda — deixou-o lá, para que alguma outra moça da aldeia o quisesse vestir. Também não fez a habitual trança. Deixou o cabelo longo, solto, a dançar com a brisa suave.
E saiu de casa.
Porque, na cidade, ia comprar um traje novo.
E ela ia para a cidade.
Por fim.
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Se estas palavras te tocaram, imagina o que sentirás ao caminhar por Lisboa com outros olhos.
Os meus walking tours são mais do que passeios: são viagens ao coração da memória feminina, com tempo, com alma, com verdade.
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Com carinho,
Vanessa
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