Quem passa na rua Fernão de Ornelas não tira os olhos da senhora que, sentada junto à porta, exibe um longo manto de bordado da Madeira. Ela pouco repara nas pessoas que por ali passam, mantendo-se concentrada na agulha, na linha e na sua criatividade.
Não se trata apenas de um bordado, elemento decorativo de casas ou igrejas, muito menos de um produto para venda nas pequenas lojas locais. Trata-se, acima de tudo, de um capítulo da história da Madeira.
E as mulheres são as protagonistas na elaboração, propagação e valorização deste património.
Madeira: uma história infinita
Há 5 milhões de anos, várias explosões vulcânicas na zona ocidental do Oceano Atlântico formaram diversas ilhas, que hoje constituem o arquipélago português: a Madeira, o Porto Santo, as Desertas e as Selvagens.
A sua história, essência e identidade têm cerca de 600 anos, quando, em 1419, as embarcações de Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira desembarcaram na praia de Machico.
Chama-se Madeira porque a sua vegetação era abundante, e muitos dos seus troncos influenciaram a construção naval portuguesa.
De uma região dependente da agricultura, conseguiu, ao longo dos anos, tornar-se num dos primeiros destinos turísticos da Europa e num dos mais bonitos. A Madeira não é apenas um destino, muito menos um mero lugar no mapa.
É um lugar de beleza única, de paz, de inspiração, de serenidade, de memórias e de histórias. E, no artigo de hoje, apresento-te um património cultural fabuloso da ilha e a sua maior artista: o bordado da Madeira e a mulher bordadeira.
Bordado da Madeira: histórias e tradições
Quando uma família madeirense nos abre a porta da sua casa, é comum vermos, pelas mesas ou móveis, uns panos delicados, detentores de uma beleza única. Chama-nos a atenção, a sua delicadeza e pormenor: eis que apreciamos o bordado madeirense.
A origem do bordado da ilha é tão antiga quanto a povoação da mesma, no século XV. Oriundos de várias partes de Portugal continental, os novos povoadores fizeram-se acompanhar da arte de bordar, passada de geração em geração.
A referência mais antiga que encontramos sobre o bordado lê-se num livro do século XVI, Saudades da Terra, de Gaspar Furtoso. O autor descreve o seguinte: “delicadas mulheres da Ilha da Madeira, que além de serem muito bem assombradas, muito formosas, e discretas, e virtuosas, são extremadas na perfeição deles, e em todas as invenções de ricas coisas que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores (...)” (p.200).
Desde sempre ligado ao trabalho feminino, o bordado, em primeiro plano, era dominado pelas senhoras das classes mais altas e religiosas dos conventos e, mais tarde, tornou-se uma atividade praticada por todas as mulheres das mais variadas classes sociais.
É então que o bordado se torna numa atividade comercial fundamental na segunda metade do século XIX. Uma das maiores impulsionadoras desta arte foi Miss Phelps, filha de um mercador inglês, que, em 1850, fixou-se na ilha da Madeira. Fascinada pela capacidade e habilidade das mulheres madeirenses, rapidamente lhes ensinou as técnicas da broderie anglaise.
A partir daqui, a história por linhas, tecidos e agulhas desenrola-se da forma mais bonita: iniciava-se uma nova arte na Pérola do Atlântico.
Mulher madeirense e bordadeira
Ao reparar na mulher bordadeira, na Fernão de Ornelas, com olhar atento e rosto marcado pela passagem do tempo, há algo que não sai da cabeça: se o desenho é a essência e o bordado o resultado, então as bordadeiras são as almas.
Mulheres dotadas de uma habilidade secular, passada de geração em geração, trabalham afincadamente com a agulha e a linha, e sabe-se lá que pensamentos e memórias lhes passam pela cabeça, para que nos cheguem, às nossas casas, um tecido delicado, pormenorizado e belo.
Atentando na mulher bordadeira, percebemos que nem sempre foi um trabalho fácil. Embora tenha se tornado uma importante fonte de rendimentos para muitas famílias, e apesar de as mulheres começarem a bordar para muitas fábricas no século XIX, elas só tiveram direito a sindicalizar-se em 1976, e, desde então, travaram inúmeras lutas para alcançar os seus direitos enquanto trabalhadoras:
Direito ao subsídio de desemprego;
Direito à segurança social, equiparado a outras trabalhadoras de outras profissões;
Direito à reforma.
O bordado da Madeira era de tal forma importante que chegava a ser mais rentável que o setor das pescas. Sabe-se que, por exemplo, no Funchal, as mulheres bordadeiras usavam, por dia, cerca de 12 kg de linho para bordar.
Atualmente, existem 860 bordadeiras registadas na Madeira, tendo-se mantido este número nos últimos anos. Confrontadas com o envelhecimento da classe, urge a necessidade de revitalizar e atrair a atenção de um público mais jovem.
Quase sempre mal vistas pela sociedade e apelidadas de "mulheres dos bordados", a madeirense que borda mostra-se uma alma resiliente, apaixonada e emancipada.
Pode o bordado ser um instrumento de empoderamento feminino?
As bordadeiras bordam empoderamento feminino e, ao longo do tempo, desfazem a linha dos pensamentos difundidos de que o bordado é o trabalho de uma mulher pronta para casar.
Enraizado no privado, no doméstico e no enxoval da família, o bordado tornou-se num instrumento de empoderamento poderoso. Assume-se como uma expressão das mulheres que, entre agulhas e linhas, bordam a sua visão de ver o mundo, as suas paixões, os seus sonhos.
Não há dúvidas de que o bordado é uma expressão própria de cada mulher bordadeira!
Carregando a sensação de propósito e realização, a arte secular ofereceu-lhes uma independência financeira e um lugar numa sociedade patriarcal. Mais do que uma simples técnica, o bordado madeirense é uma herança cultural que, através das mãos das mulheres, se perpetua como símbolo de identidade, orgulho e força.
O desafio é olhar além de um tecido. O desafio é ver que atrás de cada peça há uma história intensa: de quem a criou, das suas mãos, dos seus dias e do contexto em que vive. Talvez feito em silêncio, ou talvez não, o bordado madeirense é o testemunho do contributo que a mulher da Madeira deixou significativamente à ilha.
Hoje, valorizar o bordado da Madeira é, acima de tudo, valorizar as mulheres que o fizeram e que ainda continuam a fazer. É reconhecer a importância do trabalho feminino, muitas vezes invisível. É reconhecer o seu papel na preservação da identidade cultural da Madeira.
É mais do que uma arte. O bordado da Madeira é uma celebração da mulher madeirense, da sua história e da sua resistência.
Entre as agulhas e as linhas, despede-se a submissão e entra a liberdade!
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Se te interessam temas sobre a história da mulher, cultura e património, convido-te a ler os meus artigos no Diário de Notícias da Madeira e a acompanhar o meu trabalho, em Lisboa, de walking tours feministas.
Juntas, contribuímos para um mundo melhor, um turismo melhor e valorizamos as histórias de mulheres que moldaram o mundo!
Com carinho,
Vanessa
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